Não é exagero afirmar que a historia do brazil, tal como formulada no século XIX a serviço de um projeto de Estado, em seu culto a inventados “heróis” e a metafísica dos marcos de uma metafísica idéia de nação, beira as raias do ridículo identidário e desafia nossas humildes inteligências contemporâneas. Apesar disso, o brasileiro, ignorante por natureza, ainda apenas a conhece...
Felizmente a historiografia avança por aqui desconstruíndo mitos e “versões oficiais” demasiadamente positivas e otimistas sobre o passado e o presente do caos em que vivemos.
Para o momento, quero limitar-me aqui a um episódio carnavalesco da história republicana, ou mais propriamente, do movimento republicano, que muito bem serve para ilustrar o grande circo e carnaval que define radicalmente o Brazil em todos os tempos. Trata-se de uma “caso” muito mais interessante do que aquela estranha circunstância que sem mais nem menos levou o país da monarquia a república em um pantomímico golpe de estado inaugurando uma nada carnavalesca confusão generalizada da qual somos vitimas até os dias de hoje.
Sobre a folclórica figura de Sabrina das Laranjas já possuía prévio conhecimento, mas foi com grande satisfação que descobri um pequeno ensaio sobre essa pitoresca e hoje pouco conhecida personagem republicana que aqui lembro mediante um fragmento do referido ensaio então escrito conjuntamente pelos então doutorandos em história, Micol Seigel, da New York University e Tiago de Melo Gomes, da Unicamp:
“Na manhã de 25 de julho de 1889, em meio aos intensos debates políticos que marcaram o período, o Rio de Janeiro assistiu a uma manifestação bastante singular. Durante muitos anos, a vendedora de laranjas Sabina havia mantido seu comércio em frente à porta da Faculdade de Medicina . Um dia, o subdelegado da freguesia de São José proibiu-a de manter seu pequeno comércio naquele local. O motivo possivelmente tenha sido a irreverência dos alunos que ali se reuniam. Tendo em vista este fato, os estudantes tomaram uma iniciativa visando a revogar a proibição. Os relatos dessa ação diferem em alguns detalhes mas convergem no essencial:
“ (...)os acadêmicos de todos os anos da escola reuniram-se em frente ao edifício da Faculdade , às 10:30 e, munidos de laranjas, fincadas nas pontas das bengalas e dos guardas chuvas, sairam da academia, dois a dois, precedidos do homem dos sete instrumentos, e da mulher que o acompanha, formando o préstito mais original que temos visto.
Rompia a marcha uma espécie de estandarte, tendo a lança, uma coroa feita com bananas, chuchus e outros legumes, pendendo da bandeira duas largas fitas, nas quais foram gravadas as seguintes inscrições, em uma: Ao subdelegado do 1º distrito da freguesia de S. Jose oferece a escola de Medicina; e em outra: Ao eliminador das laranjas.
Saindo do largo da Misericórdia, tomaram os rapazes a rua deste nome, passando pela 1º de Março, por entre alas de povo, que os saudava, enquanto, das janelas, as senhoras, rindo-se, acenavam, com os lenços, cumprimentando os.
Na rua do ouvidor, onde foram saudadas todas as redações dos jornais que aí têm os seus escritórios, o préstito alongava-se desde a rua 1º de Março, até a da Uruguaiana, formando uma enorme serpente, coleando por entre a multidão, dando as laranjas um aspecto imensamente alegre a tudo aquilo.
Caminhando sempre por entre um cortejo de vivas e de palmas, ao chegarem em frente ao edifício ocupado pela redação, escritório e oficinas desta folha, a mocidade ergueu estrepitosos vivas Pa Rui Barbosa e a todos os seus companheiros de trabalho, dirigindo-se em seguida a Gazeta da tarde, e daí ao edifício da escola de Politécnica, onde foi recebida com todas as honras, pelos colegas dessa academia.
Incorporados aos alunos da politécnica aos seus companheiros, fizeram logo larga colheita de laranjas, compradas no primeiro tabuleiro que encontravam, tomando então o préstito, mais aumentado, pela travessa de S. Francisco, ruas Sete de Setembro e Gonçalves Dias, onde cumprimentaram os estudantes e as redações dos jornais: Novidades, Dia, e Revista ilustrada.
Dessa ultima rua seguiram outra vez pelas do Ouvidor, 1º de Março, Misericórdia até a Escola de Medicina.
A autoridade manifestada, logo que soube da ruidosa surpresa que lhe preparavam, longe de receber, em sua casa, à rua da Misericórdia, os autores de tão imponente idéia, evadiu-se, modestamente ( o que não achamos louvável, mas sim de pouco espírito) a tão justa homenagem feita a quem se declara tão serio inimigo de uma das melhores frutas que possuímos.
Á vista desse procedimento, como quem depõe armas, após longa batalha pelejada, os acadêmicos penduraram, na porta principal do prédio ocupado pela autoridade, a coroa cívica que lhe f ora destinada, deixando no corredor da entrada do edifício, como despojo da passeata, todas as laranjas ( ...)
De volta à Escola de Medicina, reuniram-se os acadêmicos em sessão solene, sendo nessa ocasião cumprimentados os alunos da Politécnica com um discurso entrecortado pelas palmas de todos os ouvintes” ( Diário de Noticias, 26-7-1889).”
Se ao leitor do século XXI causa estranheza a importância dada pelos estudantes à proibição do delegado, tal sensação se aprofunda quando se percebe que os vespertinos daquele dia e os matutinos do di a seguinte deram grande destaque ao evento, tratando-o como a principal noticia do dia. O contraste entre a estranheza sentida pelo leitor atual e a óbvia relevância do evento para os contemporâneos por si só aponta sua importância, mas não esgota, contudo, a riqueza de seus significados. A figura de Sabina se tornou tão conhecida a partir daquele momento, que voltou a tona, sob várias formas, ao longo de toda a Primeira República. O que este artigo pretende argumentar é que a figura de Sabina tornou-se recorrente por concentrar uma ampla gama de elementos a respeito das políticas cotidianas de raça e gênero e da negociação da identidade nacional, elementos que estavam em debate nos mais diversos espaços naquele período. Assim, por conseqüência, o estudo destas aparições de Sabina se mostra relevante para iluminar estes processos, assim como a importância do meio dentro do qual estas reaparições se deram: a cultura de massas.”
( Nicol Seigel e Tiago de Melo Gomes. Sabina das Laranjas: Gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular. 1889-1930, in Revista Brasileira de História,. SP: ANPUH/HUMANITAS publicações, v.22 nº 43, 2002, p.172-173)
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